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Art is not a luxury, but a necessity.

A difícil arte de ser negro e ter autoestima valorizada

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Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.

Nelson Mandela

Para compreender o abismo sociocultural que aparta os negros do restante da população brasileira não-negra, é sempre válido relembrar o que eles (nós!) sofreram quando de sua (forçosa) vinda para o Brasil.

Da mesma forma que imigrantes alemães e italianos, sofreram em sua viagem de navio com péssimas condições, sem atenção ou assistência do Estado quando aqui chegaram, com muitas mortes ocasionadas por doenças e mesmo ataques de feras e conflitos.

Mas, diferentemente dos imigrantes europeus, os negros não tiveram a oportunidade de permanecer com suas famílias, não puderam manter sua língua, não puderam frequentar escolas, nem seu nome lhes foi permitido preservar. Tiveram suas identidades roubadas, por assim dizer.

Não puderam continuar exercendo seus ofícios, foram reprimidos nas manifestações de sua religião e cultura como um todo.

Enquanto que imigrantes alemães, italianos e de outros países puderam, gradualmente e a cada nova geração que nascia aqui, evoluir em suas condições de vida e status social (inicialmente, habitando um casebre construído de modo rude; depois na geração seguinte com instalações mais cômodas e talvez frequência na escola; depois adquirindo novas propriedades, cultivando e colhendo de suas plantações, etc.), o negro, por sua vez, tinha de começar do zero a cada nova geração que nascia no cativeiro.

Sem contato com sua família, sem posses, sem conhecer sua história, sem perspectivas. Tal cenário logicamente criou um desajuste, uma desvantagem, e depois de séculos de escravidão essa desvantagem se reflete em menor acesso aos sistemas de ensino e a boas colocações no mercado de trabalho e, consequentemente, baixa autoestima e rara aceitação de sua própria identidade.

Imagem cedida por: Nicoly Oliver

Outro dos resultados do período de escravidão é que a estética negra sempre foi ridicularizada, através do uso pejorativo de termos como “cabelo bombril”, “cabelo ruim”, etc., estigmas de que a comunidade negra tenta se desvencilhar até hoje.

Imagem cedida por: Paula Costa

Segundo Jurandir Freire Costa, no prefácio de Tornar-se Negro, a experiência de ser negro é a de ser “violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro.” (SOUZA, 1983, p. 2)

Não são poucos os exemplos de celebridades que abusaram de cirurgias na busca de traços mais europeus, afinado seus narizes, por exemplo. Para não falar dos procedimentos mais variados objetivando alisamento de seus cabelos. Tornar-se negro vem sendo sintetizado na frase “É com desprezo, vergonha ou hostilidade que os depoentes referem-se ao “beiço grosso” do negro; “nariz chato e grosso” do negro; “cabelo ruim” do negro; “bundão” do negro; “primitivismo” sexual do negro e assim por diante.” (SOUZA, 1983, p. 6)

Um dos passos na recuperação da autoestima ocorre pela estética. Estética importa, sim. É o primeiro passo de um movimento de autoconhecimento e de autoamor maior.

Souza fala de “experiência de ser-se negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas…” (p. 17) e fica a pergunta de como o negro poderá autoafirmar-se nesse contexto não hostil.

Havia e ainda há uma necessidade de o negro assumir-se negro, sua estética, sua origem, seus cabelos, seu Eu.E manifestações recentes fazem supor que novo esforço está sendo empreendido atualmente com relativo sucesso por essa geração.

https://luciellenassis.wordpress.com/

O movimento atual cujo aumento percebe-se, age, então, como ferramenta para que o negro se assuma, se reconheça, se sinta à vontade sendo negro, o que é profundamente benéfico do ponto de vista da saúde psicossocial do indivíduo, já que, como definiu Souza: (p. 23): “A história da ascensão social do negro brasileiro é, assim, a história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais. É a história da submissão ideológica de um estoque racial em presença de outro que se lhe faz hegemônico.”

Vale lembrar que é impossível lutar por você quando você não se ama e não respeita a si mesmo.

A moda, a seu turno, enquanto movimento oscilatório e cíclico, sempre trouxe, levou e reciclou tendências. Atualmente as tendências étnicas e afins estão em alta. Mas, dessa vez, não apenas sendo utilizadas por brancas em “apropriação cultural” do que julgam ser a estética negra — listras, estampas, padronagens imitando a pelagem de animais selvagens, acessórios de grandes dimensões. Dessa vez as mulheres negras parecem sentirem-se à vontade para usar, sem medo de serem caricaturas de si mesmas. São negras assumindo a estética negra e orgulhando-se dela.

Há uma cena em um desenho animado televisionado nos anos 2000 (Static, Super Choque em português, da DC Comics — episódio 29) em que o protagonista negro Virgil Hawkins, depois de sofrer uma injúria racial, declara sobre o seu desejo de saber como é ser negro em um país africano, de incontestável maioria negra:

Queria pelo menos uma vez na vida ir para um lugar em que eu seria apenas um garoto, e não um garoto negro”.

A fala indica sua percepção pessoal de que onde vive ele não é um indivíduo, ele é classificado como um “tipo” (caricatura do negro). Por ser negro, a sociedade onde vive lhe atribui características que o precedem. Sem conhecê-lo as pessoas já lhe atribuem significados, baseados em sua cor (preconceito). Em Gana ele imagina que seria descrito apenas como um garoto, e isso lhe parece uma experiência libertadora. O personagem é estadunidense, mas seu sentimento certamente expressa o vivido pela comunidade negra no Brasil desde o século XVI. Mas, devagar, as coisas têm evoluído.

Inicialmente a luta era apenas pela sobrevivência, mesmo que nas periferias, mas agora o negro pode sonhar com mais, está ascendendo na pirâmide das necessidades de Maslow e buscando sua autoestima e auto-realização pessoal e profissional.

Tem dias muito bons pela frente. Eu creio nisso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GADEA, Carlos A. Negritude e Pós-Africanidade — Crítica das relações raciais contemporâneas. Porto Alegre: Sulina, 2013.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolo da identidade negra. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

Créditos: https://medium.com/pirata-cultural

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